Adrián Fanjul: Reitor Zago, a greve da USP tem mesmo impacto zero?!

Posted on 11/08/2014 por

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Fonte: Viomundo |

 

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Reitor Marco Antonio Zago. Foto: Cecília Bastos/Banco de Imagens da USP

Impacto Zero?

A universidade na percepção do reitor da USP

por Adrián Pablo Fanjul, especial para o Viomundo

A greve de funcionários e professores da Universidade de São Paulo já se aproxima aos 80 dias e, longe de decair, o início de agosto, que deveria ser o de um novo semestre, fez com que ela crescesse em adesão, continuando onde já acontecia e incorporando novas unidades.

Apesar de não haver uma informação sobre a porcentagem de não entrega de notas do primeiro semestre pelos docentes, os índices que ela atingiu nas unidades em greve fazem supor que alcançou em torno de um 50% das turmas na universidade como um todo.

Na primeira semana de agosto, a reitoria se viu obrigada a deslocar a “Feira de Profissões” para fora da Cidade Universitária. No campus, paralelemente, auditórios ficaram lotados com as aulas públicas de greve e com os debates propostos pelas entidades representativas de docentes e de técnico-administrativos. Em uma tentativa de quebrar o movimento, já na segunda-feira foi revelado um corte de ponto que alcançou desigualmente setores de funcionários. Mas não adiantou. Às novas paralisações de docentes, que atingiram mais dois centros (o Instituto de Biociências e a escola de Enfermagem), começaram a somar-se as manifestações de colegiados em repúdio a essa medida, caracterizada por muitos como “confisco salarial”.

Depois de uma semana na qual a reitoria não parece mostrar qualquer ponto ganho na sua queda de braço com os grevistas, o reitor Marco Antônio Zago voltou à mídia e, dentre outras aparições, deu uma entrevista, no sábado de manhã, à rádio CBN. Das muitas afirmações do reitor, uma chamou muito nossa atenção, a de que a greve, como tal, não tem “nenhum impacto” (sic), e que o único que teria algum impacto seriam os ocasionais “trancaços” dos portões de acesso ao campus e alguns bloqueios de prédios. O resto, não teria consequências sobre a Universidade. Para Zago, impacto zero.

A avaliação de impacto feita pelo reitor convida a indagar qual universidade está sob sua percepção, a que instituição se refere, se por acaso é a mesma que frequento todo dia desde há 14 anos. Descrever o significado, digamos “extensional”, isto é, aquilo que essa representação da universidade abrange no espaço e nas pessoas, e que não deixaria ver nenhuma consequência prática da greve. E essa descrição nos permitirá perceber algo de outro modo da significação, o “intensional” (sim, com “s”), que indaga os traços que diferenciam um objeto de outros. Não apenas quanto e o que abrange a universidade percebida pela reitoria como “sem impacto”, mas também como ela é, qual é o seu caráter, a quais concepções ela se adéqua.

Essa universidade resulta de vários recortes. Em primeiro lugar, um recorte composicional. Nela simplesmente não existem a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a Faculdade de Educação, a de Filosofia e Ciências Humanas, a Escola Superior de Agronomia, o Instituto de Biociências, o Instituto de Psicologia, a Escola de Enfermagem, a Faculdade de Saúde Pública nem alguns cursos da Escola de Comunicações a Artes. Todos esses espaços onde não há aulas há meses, ou havia e agora deixou de haver, não pertencem à universidade sobre a qual o professor Zago diagnostica “impacto zero”. E conste que somente relaciono aqueles com aulas paradas, sem entrar no detalhe de laboratórios que dependem do trabalho de técnicos, onde a greve sem dúvida tem maior alcance.

Essa universidade não impactada resulta também de um recorte socioeconômico. Na mesma entrevista, o reitor nos lembra de que a USP fornece alimentação aos estudantes por um preço baixíssimo nos grandes refeitórios conhecidos como “bandejão”. Ora, eles não funcionam desde o início da greve, isso não é “impacto”, não traz consequências para os milhares de estudantes que os frequentam? O recorte do “impacto zero” deixa fora, também, modalidades de acesso ao conhecimento, já que muitas bibliotecas, dentre elas uma das maiores da USP, a Florestan Fernandes, da FFLCH, não funcionam.

O que resta? O que é que não sofre impacto? Como é a universidade “impacto zero”, blindada contra greves, que surge da percepção expressada pelo reitor?

Ela está composta apenas por faculdades e institutos nos quais dificilmente os professores interrompam as aulas porque não têm a universidade como sua principal ocupação, ou porque as fundações privadas que ali atuam permitem um ganho extra, espaços sobre os quais já avançaram projetos de pôr a universidade a serviço de interesses privados. E esses espaços parecem ser o único que existe no panorama percebido, sobre o qual a greve não teria efeitos. É uma universidade que pode prescindir das ciências humanas, e também das biológicas e da saúde se, como agora, setores delas deixam de aceitar as decisões da reitoria e entram em greve. Ou pode pensar em terceirizá-las, como ensaiaram esta semana na Feira das Profissões, contratando pessoal externo porque os professores do Instituto de Psicologia e da Faculdade de Educação decidiram não participar do evento.

Essa universidade na qual não se percebe “nenhum impacto” é frequentada por alunos que não necessitam um restaurante econômico. Também não necessitam biblioteca, podem comprar ou baixar da internet (muitas vezes, pagando) tudo que devem ler, e o que não está nesses espaços, não importa, não se lê.

Não é difícil perceber o que prefigura essa representação de universidade, nem como ela é distante de uma universidade pública e de qualidade voltada para a democratização do acesso ao conhecimento.

Porém, o que mais espanta na percepção de “não impacto” manifestada pelo reitor tem a ver com outro lugar cuja existência precisa ser negada nessa avaliação: o Hospital Universitário, em greve pela primeira vez em 30 anos.

No mesmo dia em que Zago dava a referida entrevista à CBN anunciando que a greve nada afeta, os principais jornais de São Paulo dedicavam amplas matérias à paralisação do HU e às duras consequências que ela acarreta. E uma informação se repetia, independente dos pontos de vista a partir dos quais era avaliada: a decisão da reitoria de cortar o ponto dos funcionários longe de restabelecer a “ordem” piorou imediatamente a situação: “o equilíbrio instável foi para a falta de equilíbrio”, em palavras do diretor médico do Hospital, José Pinhata Otoch a O Estado de São Paulo. O médico informa ainda que 80% das 8.000 consultas agendadas para julho não foram feitas, bem como 320 cirurgias.

A partir de que percepção pode alguém com responsabilidade pública afirmar que essas ocorrências equivalem a um “impacto zero?”

A intransigência se torna irracionalidade de visão pequena quando é levada ao extremo da negação do adversário.

Adrián Pablo Fanjul, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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